quinta-feira, 8 de maio de 2014

O bolo de aniversário, os presentes e a identidade da aniversariante

Quando minha filha pediu, para o seu aniversário de 7 anos, um bolo com a “Galinha pintadinha”, agarrei a ocasião como se fosse a última tábua de salvação nesse oceano conturbado das identidades femininas em construção. Eu sabia o que estava por vir: as montruosas, horríveis e anoréxicas “Monster High”. Elas não tardaram a aparecer no horizonte, vieram na bolsa do Papai Noel que, para contrabalançar o fenômeno gótico-pop-brega, trouxe também pijamas e pantuflas (sim, pantuflas!) para Camille, aquela boneca mimosa e comportada com carinha de boa aluna de escola particular. Isso ela não tinha pedido, claro, mas Papai Noel recebeu uma outra cartinha paralela pedindo pelamordedeus que ele fizesse algo contra aquela onda maléfica que estava inundando o ambiente, tal um tsunami cor roxo-caixão. O pijama e as pantuflas eram rosa-bebê.


O bolo da Galinha pintadinha


Muitas fases, imagens, identificações se passam nessa construção complexa da identidade feminina. Ela já foi Hello Kitty, fofinha, rosinha, com lacinho na cabeça, antes de se tornar uma princesa, esperando o príncipe encantado numa carruagem colorida. Enfeitada de princesa, toda rosa, mas não rosinha, ela estava lá sustentando a imagem de uma dama que já não mais usava lacinhos para si mesma mas para um outro. O bolo foi uma carruagem, porque a dança das marcas me incomoda e Hello Kitty já havia conseguido terminar com minha paciência para todo e qualquer merchandising. Não havia nenhuma das princesas clones no bolo, nem a amarela, nem a azul, nem a rosa, nem a verde. Enfim, elas apareceram furtivamente nas velas... Mas foram logo queimadas em praça pública e empaladas num palito...



 O bolo da Hello Kitty


A carruagem da princesa

Depois da princesa, veio o mundo encantado da bailarina, também rosa, mas algo assim mais determinado e equilibrado na ponta dos pés da feminidade, com saias de filó, collants, e o corpo desenhado debaixo do rosa-bebê. O bolo da bailarina tinha saias. Saias rodadas, daquelas que voam e que mostram algo mais do que fofura. Vestida de bailarina, cabelos presos, paetês, saia de filó transparente e collant rosa, ela estava pronta para o espetáculo do mostra-esconde típico que vai se inscrever como leitmotiv feminino.


O bolo da bailarina

Até aí, as bonecas seguiam o ritmo da música infanto-feminina que tratava do corpo de uma menina, não de uma mulher. Camille, a tal boneca com carinha de menina comportada, que não diz bobagens e não pula em poça d’água, apaziguava incêndios que as Barbies atiçavam. Sim, elas vieram, essas bonecas com cara de americanas indo para o Spring Break em Fort Lauderdale, essa espécie de prequel de Pamela Anderson (que deve certamente ter tirado sua inspiração daqueles seios de plástico enfeitados com um sorriso Colgate).
Na minha época, e no meu universo, não existiam Barbies. Existiam Susis. Susi era morena, a minha ao menos era. Era bem mais encorpada e tinha menos seios. A Susi foi, aparentemente, inspirada por uma tal de Sindy, uma inglesa que competia com a Barbie e que foi, ela mesma, inspirada por uma tal de Tammy, americana. A Susi tem uma história interessante, porque, com a mudança e a modernidade dos materiais – os plásticos, vinis e outros tantos, que invadiram nossas vidas nos prometendo felicidade eterna – as modificações das formas da boneca foram no sentido de deixá-la mais gordinha. Parece incrível que no ano de 1975, quando a moda usava cabelos longos, hippies, corpos magros por utopias e drogas, a Estrela tenha decidido desenhar um rosto mais rechonchudo para a nossa Barbie nacional. Mas, justamente, ela não era Barbie, era Susi. O fato é que Susi tinha, para mim, a cara da minha mãe. Ela tinha a aprência de mulheres normais, acessíveis, e nem por isso ela deixava de ser bonita. Não sei o que aconteceu com a Susi depois dos anos 70 porque deixei de brincar de boneca e quis, ao invés disso, o cabelo da Paula Toller quando o Kid Abelha começou: curtinho e descolorido. Bom, o curtinho só fui ter coragem com mais de 20 anos e o descolorido, nunca... Minha imagem de cantora do Eurythmics ficou só na fantasia.


Susi

Depois da Camille, que teve seu tempo de glória, veio a Idalina, que ainda está durando, apesar de ter sido um tanto vampirizada por mostrengas góticas. Idalina é uma boneca “do mundo”, como se diz aqui na França. Isso quer dizer, com uma identidade cosmopolita, um tanto quanto ela deve se achar também com essa mãe aqui e com sua dupla nacionalidade. Cidadã do mundo, ela se apaixonou por uma coleção onde as bonecas vêm de outro lugar: Espanha, Japão, Austrália, África (eu sei, todos são países, menos a África que, numa só palavra, vira uma amálgama negra vestida de roupas coloridas...). Mas, enfim, elas são interessantes porque são imagens do outro, do outro nela. Então, como mãe (e toda mãe está espreitando para dar o bote), fiz pesar a balança para o lado da espanhola, Idalina. Não era loira, ponto pra ela; não era magra, ponto pra ela; tinha olhos castanhos, ponto pra ela; ela vinha com um livro dentro da caixa, ponto pra ela; ela era latina, pontíssimo pra ela. Pronto, escolhemos Idalina e lemos sua história de menina pré-adolescente filha de mãe solteira na Espanha, mãe essa que devia trabalhar como cantora de flamenco para ganhar a vida. Vida difícil, a de espanhola. Idalina trouxe com ela roupas de flamenco, leque, xale e uma linda rosa vermelha para colocar nas madeixas.

Camille 


Idalina

Até que chegou a época de pensar no bolo de aniversário de 7 anos. Justamente naquele ano ela havia descoberto o universo todo em roxo das Monster High com uma amiguinha que já se interessava por aqueles esqueletos fantasiados. Fiz o bolo, inclusive, dessa amiguinha, e o tema escolhido foi, logicamente, esse. Tentei fazer o máximo para tirar do bolo de aniversário a cara de bolo de Halloween para o qual o tema tende. Fiz o que pude e não saberia fazer duas vezes. E eis que, de repente, num surto nostálgico de sua condição infantil que se vai com o tempo, apareceu no horizonte a Galinha Pintadinha vestida de capa e espada para lutar contra jovens anoréxicas. Gordinha como é, a tal galinha azul não teve muita dificuldade para quebrar os ossos das góticas de salto e o bolo saiu colorido, florido e com a galinha que estava ali para significar em cacarejos que a infância ainda duraria um tempinho. Ufa! Mas a tal galinha tinha uma outra carta na manga. Ela era brasileira e nenhuma das amiguinhas de minha filha conhecia a criatura, coisa que pedia explicações e a anfitriã mirim se esmerava a discorrer sobre sua identidade brasileira, aquela que ninguém tinha.


Monster High


Bolo Monster High da amiguinha


Os esqueletos foram enterrados. Como puro efeito de moda que são, foram parar numa caixa, caixa que foi parar no fundo do armário, armário que é regularmente inundado com mais brinquedos, como pás de cal. E eu vou deixando o tempo decompor esse fantasma, não tenho hábito de evocar almas penadas.
E então já vem vindo a época em que as questões relativas ao tema do aniversário e, lógico, do tão falado bolo, recomeçam. A marca atual que faz sucesso entre as meninas da escola vem da Argentina, pela Disney, e se chama Violetta. Bom, nada contra uma argentina que, comparada à minha querida Idalina, tem lá também seu sangue latino. Mas, mas, mas, puro produto Disney, princesa latina, ela ocupa o lugar de pobre coitada filha de mãe morta e de pai interessado por uma malvada maquiada. Sim, sim, eu sei porque já assisti com ela esse negócio. Princesa de carne e osso, dessa vez, nem rosa, nem azul, nem verde, nem amarela : violeta. Essa, cantorazinha de uma espécie de escola de estrelinhas, ainda traz um outro ideal perigoso que, junto com a magreza da Barbie, sem falar na anorexia das Monster High, invade a caraminhola das meninas de hoje : o ideal da fama. Fama de qualquer jeito, a qualquer preço, querem todas ser “star” do star system que as transforma todas em buracos negros. Ou pior, em melancias, melões, jacas, e quem sabe mais o quê...
Então, mamãe coragem pensa e queima os neurônios para propor outra coisa. Pensei: por que não Paris? Tanta gente sonha com Paris e, nós, nós estamos aqui, então... Ah, mas a realidade não constrói sonhos... Mas quem sabe o ponto não seja justamente esse? Tentar sonhar com nossos elementos reais e que possamos assim, com nossos sonhos, transformar a realidade de fato que nos rodeia? Não sei, mas quem sabe minha filha venha querer a ser, no espaço de uma festa, a parisiense estereotipada passeando com seu poodle em baixo da Tour Eiffel, ou como a parisiense de esquerda tomando seu café em Saint Germain des Près, tão estereotipada quanto. Não posso deixar de pensar no meu papel e nas minhas imagens femininas nesse processo, já que, finalmente, gostaria muito mais de ver minha filha lembrando, de algum modo, Simone de Beauvoir que Pamela-Barbie Anderson ou Lady-Monster Gaga-High...




sábado, 1 de junho de 2013

Parabéns pra você!!


Esse texto foi o resultado de minha modesta participação da página de um amigo no facebook, que começou com seu « Bolo da sexta ». Ele fazia bolos toda sexta-feira, sempre acompanhados dos deliciosos textos que escreve. Para o aniversário de dois anos de sua empreitada, resolveu convidar amigos para se prestarem ao mesmo exercício que ele. Tive a honra de ser a primeira convidada, e de fazer o bolo de aniversário de dois anos do « Bolo da sexta ». Aqui está ele:

Parabéns pra você, nessa data querida !

Foi assim que começou a minha história com bolos…

Eu nunca fui muito ligada às artes culinárias. Muito pelo contrário, a cozinha sempre foi, para mim, a representação por excelência da submissão feminina. Um « piloto de fogão » era tudo o que eu não poderia ser. Certa ou errada, ainda não sei, queria outra coisa, já que o tal piloto representava, no meu imagnário, alguém que renuncia à sua própria vida para alimentar a vida de outros. Em vários sentidos. Então dei as costas para o mundo encantado da cozinha… Nunca aprendi a cozinhar, nunca fiz bolos, nunca me interessei por cores e sabores vindos de lá.

Até que minha filha, Julia, veio mudar os meus hábitos endurecidos. Não que eu tivesse me tornado um gourmet, ainda menos um chef, mas comecei a ter um certo prazer em poder fazer pequenas coisas que lhe agradassem, coisas que vinham também da cozinha. Mas bolos ? Bolos não, isso nunca. Na verdade, nunca fui muito afeita ao gosto mesmo do bolo, à tradição de um bolo com café… Poderia até comer um pouco, mas fazer… Fazer era todo um passo ainda muito prematuro para mim.

Julia fez então um ano e questões relativas a uma festa logo se colocaram, e a questão central, logicamente, para nós, brasileiros, era justamente saber como seria o tal bolo de aniversário… Como fazer? Eu, em Paris, querendo festejar o aniversário de um ano de minha filha, tradição completamente estranha para franceses, e querendo um bolo, daqueles bem bonitos, bem no centro da mesa. Já imaginava as fotos, aquelas que guardaria por toda minha vida, de minha filha soprando as velinhas, as primeiras.

Não sabia fazer um bolo, muito menos decorar um, então encomendei algo que encontrei de mais parecido. Encomendei um «fraisier», espécie de torta francesa de mousse de baunilha com morangos frescos. Ele estava bom, mesmo delicioso, mas não era um bolo de aniversário, ainda menos de criança. Então ficou aquele gostinho de que ainda faria uma festinha para minha filha como se deve, como fazemos nós, brasileiros.

Quando vivemos num país estrangeiro temos tendência a nos apegar a certas imagens que temos do que seria uma certa situação para nós, se estivéssemos « em casa ». Idealizamos essa situação e nos apegamos a ela como questão de honra. É uma forma de não se esvair totalmente na nova cultura, de se guardar uma espécie de bastião último do que seríamos verdadeiramente no âmago mais profundo. No meu caso, isso apareceu, entre outras, na situação dos aniversários de Julia. Gosto de fazer com ela exatamente o que tinha e que, de certa forma, todos temos no Brasil. Pensar no aniversário é pensar na festa, no bolo, no tema, na decoração até a mínima forminha de brigadeiro, nas lembrancinhas… Nada disso existe na França, e lá não há a mínima cultura de festas infantis. Eu, ao contrário, vinha de uma família onde festinhas de aniversário, mesmo as mais simples, eram cuidadas com zelo, com detalhes, e com muito sabor. Minha mãe sempre fez, e ainda faz, bolos maravilhosos, e minha tia – minha segunda mãe – era uma doceira ímpar que decorava bolos maravilhosamente bem.

Minha identidade passava então pela festa de aniversário, e a festa de aniversário passava pelo bolo… Tinha decidido que não faria mais um aniversário brasileiro com tortas francesas, precisava de um bolo, um bolo nosso, grande e decorado. Procurei durante muito tempo uma boleira brasileira em Paris, até que encontrei e no segundo ano o bolo foi um bolo brasileiro, ao menos na aparência. Sim, porque ele não era bom… E então fui pensando, amadurecendo a idéia de enfrentar o mundo misterioso da cozinha fazendo um bolo para o aniversário seguinte. Eu queria um bolo bom e bonito, e tinha um ano para aprender…


Passando umas férias de verão no Brasil em agosto, tomei a decisão e pedi à minha mãe, que sabe fazer bolos como ninguém, que me ensinasse (para sua imensa surpresa, ficou mesmo boquiaberta !). Incluímos Sônia no projeto, a diarista que trabalha com minha mãe e que faz bolos decorados para completar o mês. Ela trouxe materiais, glacê real e uma folha de papel de arroz para decorar. Era uma decorção simples dirigida a uma iniciante. Chegando em Paris, tentei repetir os ensinamentos e tudo saiu perfeito (para minha imensa surpresa, fiquei mesmo boquiaberta !). Não somente o bolo estava ótimo, mas ele também estva lindo e deixou em mim o desejo de continuar aprendendo. Estava certo, a partir de então, que os bolos de aniversário seriam todos feitos por mim.

Ninguém acreditava ! Eu, justo eu, fazendo bolos tão bonitos, tendo tanta paciência para decorá-los ? Como assim ? Sim, eu, e tinha gostado…

A partir daí todos os bolos da casa, assim como todos os bolos das casas amigas foram feitos por mim, e os bolos viraram uma espécie de desafio. A cada aniversário, cada festa, uma nova técnica, uma nova receita. Mas sobretudo novas técnicas de decoração. Do glacê real, passei para a pasta americana, da pasta americana para o buttercream e o buttercream com merengue suísso. E mais as técnicas evoluíam, mais era necessário ter certos conhecimentos que, eu, tendo rejeitado tanto pilotar um fogão, não sabia. Fui pegando então o caminho da cozinha, voltando atrás, mas não exatamente, porque ela agora era um lugar de festa.

Hoje é o aniversário do Bolo da Sexta. Dois anos… Dedico então, daqui de Salvador com a ajuda preciosa de minha mãe e de Sônia, com todo carinho, um bolo de aniversário no estilo dos meus primeiros… Os bolos que me reconciliaram com uma parte de mim mesma… Sei que, de certa forma, a reconciliação é também o espírito das suas sextas perfumadas de bolo.


Parabéns pra você, nessa data querida ! <3
Tereza

Para quem quiser, a receita do bolo veio daqui:
http://www.nlrockrecipes.com/2012/06/ultimate-lemon-cake.html

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Um suspiro de cansaço...


Meios acadêmicos nunca foram os mesmos, aqueles dos meus pensamentos imaturos e idealistas. Eles sempre tiveram seu quê de prepotência e autosuficiência com as quais exibições são tão eficazes. Mas por que razão elas são eficazes, enfim? Ah, sim, claro, porque existem os tais idealistas imaturos que tomam tais exuberâncias narcísicas como garantia de trabalho sério...
Meios acadêmicos transbordam de guerras e picuinhas narcísicas dificilmente evitáves. Sim, sim, mesmo que não se queira, é de fato inevitável. Basta experimentar elogiar alguém diante da pessoa errada. Você pode tentar fazer essa experiência, mas, enfim, pode custar tão caro que não cosidero que valha realmente a pena. As conseqüências dessa experiência podem seguir você durante anos, ou toda uma vida...
Meios acadêmicos sabem racionalizar. As justificativas para a divisão de campos de batalha narcísica são sempre sublimadas, quase razoáveis. No entanto, você acaba por saber, cedo ou tarde, que as razões estão mais para “ele roubou minha clientela/meu aluno/minha mulher” do que para “ele derrubou minha teoria”. A pior dentre todas é a luta fratricida. É a disputa pelo amor e reconhecimento de um pai qualquer e, ao mesmo tempo, a luta pela sucessão desse pai. “O pai eficaz é o pai morto”, já dizia um deles, o que, nesses casos, aparece de forma mais do que clara. Nada melhor do que a morte do pai para que as filiações apareçam e, com elas, a dilaceração das frátrias em tantos clãs distintos.
Meios acadêmicos são clânicos, com uma diferença: em organizações sociais clânicas há uma certa mestiçagem porque, normalmente, pratica-se a exogamia. O que se pratica em Universidades e meios afins é a endogamia, o que causa uma série de deformações aleatórias, mas esperadas. Repetições estéreis, discursos incompreensíveis, hermetismos autofágicos. Interdisciplinaridade, ou qualquer outro tipo de inter qualquer coisa, é somente uma figura retórica cuja função é a de envernizar uma crosta de velhos pensamentos empoeirados e caquéticos.



Meios acadêmicos são sistemas autosuficientes. Tudo o que possa vir enriquecer ou ilustrar quaisquer ruminações teórica é tido imediatamente como ameaça. É preciso que a atividade de ruminante intelectual continue tal qual ela sempre esteve, senão ela não se reconhece. A tentativa de introdução de elementos externos normalmente culminam no fechamento ainda mais radical do sistema. Um tanto quanto fronteiras de países europeus de extrema direita...
Meios acadêmicos de vez em quando emperram quando vernizes empolados não conseguem mais esconder a verdadeira face crua do que se trata ali: de si. E é uma questão de vida ou de morte.
Meios acadêmicos continuam os mesmos. Eu é que mudei.

(o desenho maravihoso, é de Quino)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O carnaval e a vida...


Minha gente, carnaval vai comer solto em Salvador a partir de quarta-feira... E eu aqui vendo a banda passar pela janela do meu computador... Eu até que iria ver uns e outros só pra ter essa sensação boa de dançar solta só de shortinho jeans, tênis e camiseta... Aliás, quem já foi ao carnaval de Salvador sabe: o tênis do carnaval vira cinza na quarta-feira de cinzas... Vai pro lixo... Eu tinha um Le Coq Sportif lindinho que usei num desses carnavais da vida, não tinha outro e não quis sair pra comprar... Faleceu...
Nunca conheci ninguém em Salvador que tivesse uma relação simples e límpida com o carnaval. Ama-se e detesta-se carnaval várias vezes na vida quando se vive em Salvador. Primeiro: porque o carnaval em Salvador é toda uma cultura e nem é parelela, é imbricada em cada curva da cidade e dos corpos que nela vivem. Segundo: porque o apelo do corpo, da liberdade, mesmo que ilusória, acaba sempre por convercer os mais recalcitrantes que vão pelo menos uma vez na vida ver a banda do Olodum passar, e ainda podem dizer que é "cultura", e não das menores, cultura "afro". Quem nunca foi na rua ou, se a rua fosse demais, num camarote, assim "só pra ver"? Quem nunca dançou o "requebra" ou o "segura o tcham" "só pra rir"? Quem nunca aproveitou o carnaval pra beber, fumar, cheirar e se dar a experiências e contatos imediatos do terceiro grau? Terceiro: todo mundo já foi atrapalhado um dia na vida pelas festas infindas em Salvador. Yemanjá, Bonfim, carnaval, ensaios, lavagem daqui e dali, dia de santo, que, na verdade, são vários nomes da mesma coisa. Quem nunca ficou preso num congestionamento em Amaralina por causa dos desvios da festa de Yemanjá? Quem nunca precisou entrar em Ondina no carnaval sem a conta de luz e foi barrado? Quem nunca teve um compromisso na escola, faculdade, trabalho, num desses dias e teve que passar horas resolvendo o quebra-cabeça só pra poder chegar? Chegar eu digo, porque o atraso é obvio. Quem nunca teve um (a) namorado (a) daquele tipo que termina antes pra voltar depois do carnaval? Ou aquele tipo que some simplesmente de quarta a quarta? Ou aquele que tem o bloco como um compromisso religioso e, faça chuva ou faça sol, doente, morrendo, sob ameaça, ele (ela) vai pular? E quem nunca foi esse tipo de namorado (a)? Então, quem, que tenha vivido em Salvador, pode dizer que escapou do carnaval?
Criança, morava nos Barris e ia com meus pais na praça da Piedade ver passar o Jacu! E o pessoal do Traz os Montes se vestia de macacão de brim! Comia picolé de limão da Kibon e me interessava mais pelos camaleões nas árvores do que pela travesti que dançava no Jacu. Aliás, quem era mesmo aquela?? Era Valéria?? Afro, afoché, apache, travesti, e chiclete (que já existia), dava tudo no mesmo, era tudo batuque, barulhada ensurdecedora quando o trio elétrico passava perto e fazia o coração saltar. As fantasias, as mortalhas, as máscaras faziam do carnaval algo de que gostava e tinha medo. A loucura fascina.
Cresci, não gostava de bloco, também meus pais nunca me dariam dinheiro pra sair em bloco! Logo eu, que morava logo ali! Ia de pipoca com minha prima Tiu-Tiu. Naquela época, de pipoca dava. De dia, Campo Grande, de noite Barra. E quando dava fome, sempre tinha um vendedor de melancia no pedaço!! Melancia mesmo!!! Como pode, não é??? Pois é, a sensação de comer uma melancia tranquilamente sentada no farol da Barra, com a brisa do mar e o carnaval fervendo logo ali na frente era mesmo algo de surreal... Deve ser por isso que era tão delicioso!





Já me aventurei na Praça Castro Alves... Pra nunca mais... Aquele lugar é incontrolável, e naquele dia entendi que minha vida valia mais do que certos prazeres fugazes. Mas Carlos Gomes era possivel, lá no Clube de Engenharia com meus irmãos, minhas ex e atuais cunhadas.
Minha bermuda preta e branca que detestava, porque parecia de palhaço, era o uniforme perfeito pro baile do Baiano de Tênis, o "Preto e Branco" justamente. Arrumei uma função louvável pra quem só tinha mesmo o destino de pano de chão. E o Português também não ficava pra trás. Íamos, Tiu-Tiu e eu, e aprontávamos todas! Era muito bom! Os bailes eram muitos e eram divertidos. E, francamente, pra um bando de jovens afoitas, que a música fosse afro, dance, hip-hop, qual diferença faria? O importante mesmo era saber se eles iriam também! Pra isso, nada melhor do que aqueles clubes. Hoje em dia não existem mais, nem os bailes, nem os clubes.
E então veio a fase rock, comunista, revolucionária, militante de grupo ecológico. E o carnaval não estava mais com nada, o negócio era Titãs na Concha, mesmo sozinha, gritando cabeça dinossauro. Geração Titãs, como dizia meu irmão, pra encher o saco, claro, mas ele não entendia que soava como reconhecimento. Cantava e, convidada por um amigo para ser seu par num trio, disse não. Jovem tem convicções e eu era roqueira! Talvez essa seja a unica decisão na minha vida em que voltaria atrás se pudesse... Não seria provavelmente uma Mercury, mas teria me divertido certamente e hoje sei que se divertir na vida é coisa séria.
Depois as terras sem carnaval foram meu porto. De vez em quando, quando a vontade de me conectar com Salvador é mais forte do que o que a praia de Vilas pode me oferecer, vou ver o carnaval na rua. Vou ver o Olodum, dizendo a mesma coisa que os "cultos", vou num camarote em Ondina, mas a vontade de botar o pé no asfalto sempre toma a rédea e sempre acabo "descendo", pra dansar assim, de tênis no chão, solta. Eu que nunca fui de bloco, saí em um, fui no Crocodilo pra ver Daniela e levei um bocado de gente comigo. É meio punk, confesso. Ver aquele povo do lado de fora com olho de lobo mau, seguranças com gestos de lobo mau em cima do povo, e você ali, de abadá personalizado pela costureira da sua rua, achando que está protegido do mundo lá fora... Bloco é o condominio fechado do carnaval...
E o carnaval ficou como símbolo, assim como as praias e as andanças que fazia entre Vilas e Jauá (sim, sim, eu andava de Villas até Jauá, ou até onde conseguissem as pernas e o estômago, mas essa é outra história)... Da fase rock me sobrou uma certa aversão pelo axé. Mas ainda assim, de vez em quando, ouço e danço, porque é uma forma de amar Salvador. Sim, Salvador é um monte de coisas, de outras coisas além do carnaval. Mas o carnaval está mesmo no sangue daquele lugar, nas veiais, no ar, na paisagem, dentro das cabeças, nos pés, nas cadeiras, nas vidas. Na minha.
Acho que o prazo de validade do meu último carnaval está acabando. Humm, acho que da próxima vez vou de Ivete...

sábado, 24 de novembro de 2012

Barris


Tinha prometido ao meu amigo Cecé que iria escrever sobre os Barris um dia, como ele escreve sobre a cidade baixa, assim, de uma forma poética, com lembranças misturadas a sentimentos… Mas será possível que se tenha lembranças sem sentimentos ? Ou seriam elas lembranças porque são carregadas, inundadas deles até a raiz ? Talvez... Talvez a memória seja mesmo algo puramente sentimental...
Esperei muito para poder começar a escrever sobre os Barris... É como se fosse um domínio sagrado, intocável. Em todo caso, sensível, e muito. Talvez um pouco de medo dos sentimentos que me invadem, mas ultimamente não pude evitá-los... Um apanhado de eventos e encontros me fizeram entrar num túnel do tempo do qual acho que ainda não saí. Pensei então que não deveria existir melhor momento do que esse para falar dele...
Barris…
Foi lá que fui parar quando cheguei naquela terra que seria a minha de adoção. Pouquíssimas vezes na minha vida assumi que era carioca… Minha mãe detesta essa minha rejeição pelo Rio de Janeiro... Não saberia dizer a razão, talvez simplesmente pelo fato de que era aquela a minha terra, não outra, na alma, no destino, maktub. Salvador, com todas as suas vogais abertas e seus oxentes parecia ter sempre corrido nas minhas veias. E de certa forma sim… Meu pai, baiano e soteropolitano de Brotas (sempre adorei isso de ser « soteropolitana »), sempre tinha mil histórias para contar, de quando ainda passava bonde, de quando o centro da cidade ainda era acolhedor, dos carnavais antigos, dos pratos feitos por minha vó Cecé, das incursões políticas de meu avô no PTB da época, das praias da Ilha, das peraltices de quando ele era criança lá em Brotas… Minha vó sabia fazer um ensopado de mamão verde que ela usava como se fosse chuchu e que ela mandava os meninos pegarem, logo ali, no quintal da casa... Da casa de Brotas... Nunca conheci essa casa, acho que ela nem existia mais quando chegamos em Salvador, mas ela sempre viveu no meu imaginário de criança, um casario daqueles coloniais com suas janelas imensas e seus corredores infindos.
Eu sempre fui ávida de histórias alheias, podia ouvi-las por horas a fio. Talvez por isso faça hoje o que eu faço: só escuto. Um conto contado por seu dono tem sempre uma riqueza escondida, a riqueza de revivê-lo, de voltar lá e de ver de novo tudo aquilo, de ver e de  compreender onde batia o coração.
Minha tia Lyra, irmã de meu pai, também contava muitos deles. Diferentes, mas contava Salvador de uma época em que tudo parecia bem mais fácil. Onde o medo não era tão banal e tão quotidiano. Ela contava histórias de outros lugares também, e tinha fotos... Fotos em preto e branco como aquelas das estrelas de Hollywood, com seus vestidos acinturados, suas saias rodadas, como se tivessem saído de um cartaz daqueles filmes antigos.
Cheguei nos Barris. Tinha três anos, cabelos longos nunca cortados, olhos grandes cheios de curiosidade. Minha tia sempre contava a minha chegada, era uma de suas histórias preferidas. Ela dormia de tarde, sempre, e eu cheguei de tarde, no meio do seu sono. Debrucei-me em sua cama e fitei-a com meus olhos grandes. Foi amor à primeira vista. Minha tia me deu uma irmã, Martinha, que foi sempre companheira e, muitas vezes, antagonista, como toda irmã deve ser. Dividíamos tudo, guarda roupa e confissões.
Um apartamento livre no andar de baixo selou meu destino nos Barris. Ali, no edifício Cardoso, número 9, apartamento 202 da Rua Almeida Sande.




Meu quarto sempre foi o mesmo, aquele que dava para o Vale dos Barris que eu contemplava de noite quando não tinha sono. Sempre tinha um bando de loucos que jogava bola a qualquer hora do dia ou da noite numa daquelas ilhas entre avenidas transformada em campo de futebol com trave e tudo. Dizia a lenda local que até meu irmão Sergio fazia parte deles… No vale tinha também o estacionamento de São Raimundo, que sempre tinha uma atividade inusitada tipo circo, show, evento político, culto de igreja. Eu pude assim assistir todo um espetáculo de um motoqueiro que se equilibrava com sua moto na corda bamba. Aquela noite foi sensacional ! Meus pais não sabiam nada do meu interesse pelo estacionamento de São Raimundo. Também pudera, eu não adivinharia hoje em dia se fosse com minha filha, o que me faz pensar que eu devo ter perdido algo da loucura infantil que me fazia acordar de noite para, simplesmente, observar o vai e vem dos carros, que eram poucos, e que desciam daquela ladeira que vinha do Garcia…
Lembro daquele quarto como se estivesse entrado nele ainda ontem com seus móveis 70’s laranja choque. Minha mãe deixava também lá sua máquina de costura. Nunca soube por qual razão ela tinha ido parar no meu quarto. Minhas cortinas eram da Disney, com Donald e Margarida que eu conhecia de cor e salteado, faziam também parte das minhas distrações noturnas. De manhãzinha, Donald e Margarida ainda estavam a postos, e eu sentia aquela mão suave fazendo carinho no meu pé. Era minha mãe que me colocava minhas botas ortopédicas antes mesmo que eu acordasse e ela fazia tão delicadamente que quase nem me acordava. Os pés pesados de botas caíam no chão e era aí que eu entendia que eu já estava calçada. Quando não usava mais botas, era o cheiro do café que me acordava, aquele cheiro delicioso de vida em casa e de carinho de mãe.
Naquela apartamento tive um grande amor: meu cachorro Honey. Ele já vinha do Rio conosco, mas eu o conheci ali, naquele apartamento, naquele bairro. Levava Honey pra passear de tardinha, e aproveitava para explorar ao redor. Com ele me sentia protegida, entrava em todas as ruas, fuçava tudo, como ele. Lembro da cor do seu pelo, cor que deu seu nome, cor de mel. Lembro também que ele era invocado e que adorava biscoitos cream-cracker. Num dos seus aniversários, demos um pacote inteiro de biscoitos para ele de presente. Mas ele era meu amor, apesar de um tanto antipático. Ele foi a primeira dor e a minha primeira saudade de verdade. Lembro até hoje do meu robe rosa que vestia quando Seu Zé, zelador do prédio, veio bater na porta de casa para avisar que meu cachorro estava caído lá em baixo. Ele estava tão velhinho e já cego com seus 16 anos que não entendeu que forçava para fora da varanda... Era somente o segundo andar, mas foi demais pra ele assim tão velhinho, justo ele que passou a vida inteira ali, mas um dia esqueceu tudo...
Minha escola era também nos Barris, era uma escola de freiras. Elas eram muito enfezadas, castradoras e, por isso mesmo, deliciosas, porque nada podia ser mais valioso do que a irritação de uma delas. Não podíamos usar bijuteria, nem nada mais que pudesse enfeitar o corpo. Claro, aqueles corpos cheios de desejos de toda sorte não podiam ter voz nem espaço. O desafio era então conseguir passar pela irmã Rocha com uma bijou qualquer sem que ela percebesse... Quando acontecia, ela tomava, então a aposta era alta! Mas valia a pena. Uma vez ela bateu com seu sininho na cabeça de um aluno. Dizem que sangrou, ou já era efeito do telefone sem fio onde corria tais histórias. Decidimos então: tomaríamos aquele sininho, e fizemos. Roubamos o danado num momento de distração e saímos correndo com ele sacudindo e tocando dentro da mochila. Foi um êxtase místico!
Eu ia a pé pra escola, e o meu caminho era a Ladeira do asfalto. Lá tinha a banca de Seu Gorgani (bom, eu dizia assim…). Ali reinavam todos os meus pecados de criança. Bala, chiclete, paçoquinha, pipoca doce (aquela do saquinho rosa), revistinha da turma da Mônica, transfers e o ápice : as figurinhas. Podia ficar sem comer na escola para poder comprar mais um pacotinho de umas míseras três figurinhas, tentando, mais uma vez, conseguir aquela que faltava naquela página, a última do álbum, aquela que ninguém tinha… Fiz tantos álbuns, sempre tinha um novo, Sítio do Pica Pau Amarelo, Turma da Mônica, Sarah Kay...
A ladeira do asfalto era chamada assim porque destoava do estilo do bairro. Todas as ruas por lá eram de paralelepípedo, menos a ladeira do asfalto, que, muito mais tarde, mas muito mesmo, vim a saber que se chamava Rua General Labatut ou Dionisio Cerqueira, nunca lembro. Aliás, todas as ruas por ali tinham outros nomes, os nossos nomes: rua do meio, rua dos jardins, rua da padaria...
A partir da ladeira do asfalto, todas as ruas eram de asfalto. Era como se o mundo moderno começasse ali, e que vivêssemos em outra época, ou talvez em outra dimensão, na idade da pedra lascada em paralelepípedo. Aquela modernidade era ótima, muito melhor para andar de bicicleta. Picula no paralelepípedo se chamava pé torcido e a bicicleta ali dava tanto solavanco que só mesmo andando em cima da calçada. Patins então, nem pensar....
Não, patins era no prédio ao lado, o Amapá, que tinha uma área livre no térreo com piso de cerâmica que era perfeita para nossos ensaios. Mas o zelador não gostava nada, nada daquela idéia... Ele precisava encerar aquela cerâmica vermelha depois das nossas tardes de patins. Também era ótimo para « 1, 2, 3 salve todos » e « Mamãe posso ir ? ». Era o nosso refúgio, sobretudo quando chovia.
Atrás do meu prédio havia todo um universo paralelo que também fascinava : a roça do lobo. Era assim que se chamava a favela que descia a encosta em direção ao Vale dos Barris. Várias pequenas picadas entre os prédios davam acesso à favela e, obviamente, o interesse que tínhamos por ela era inversamente proporcional à aprovação dos nossos pais para que fôssemos explorá-la. Como ela descia até o Vale, ela ficava bem debaixo da minha janela, o que me dava, em muitas ocasiões, distração por muitas horas.
A roça do lobo era bem animada com seus barracos armados, no sentido literal e figurado. Muitas lajes onde as pessoas se escondiam dos demais da casa mas nos ofereciam, a nós, espectadores das janelas, os mais fascinantes dos espetáculos. Muito amor, muito ódio, muito menino empinando arraia naquelas lajes, muito cachorro secando ao sol juntamente com as roupas, pelas quais se adivinhava o estilo e a composição das famílias. O panorama sobre a favela era tal que, quando infringia a lei e me aventurava naquelas picadas, sempre ficava o receio de ser observada, de ser descoberta por algum delator, de ser pega no salto. Mas era delicioso entrar por uma picada e descobrir sempre um novo caminho para sair em outra. Foi na roça do lobo que tentei subir no meu primeiro e único pau de sebo, também único lugar naquele bairro capaz de oferecer esses prazeres facilmente condenáveis no mundo pequeno-burguês dos prédios e dos casarios locais. Era também lá que conseguia me deliciar com bananas reais, cavacos, sequilhos, capelinhas, geladinhos e abafabancas. Quase toda casinha, quase toda portinha, quase toda janelinha vendia algo, fazia algo, oferecia um serviço, um produto, um trabalho, uma macumba, era só escolher.
O tempo passando, fui ganhando o direito de explorar os territórios proibidos, como a tão desejada rua da biblioteca. Mas antes disso, apesar de proibida, não nos fazíamos de rogados e íamos, pelo simples gosto de desafiar a ordem, até a biblioteca central, onde éramos amavelmente acolhidos a cada vez, como pequenos selvagens que se interessassem inesperadamente pela leitura. Davam-nos livros, levavam-nos até as poltronas confortáveis das salas de leitura, e nos fitavam com olhos de missionários. Não entendiam que estávamos ali somente para desafiar nossas respectivas figuras da autoridade. Muitas vezes conseguimos entrar escondidos no cinema e vimos filmes, ou melhor, pedaços deles, porque o interessante não eram os filmes em si, era o fato de estarmos lá dentro, só isso. Até hoje, pagar nesse cinema me parece estranho, ele ainda tem um quê familiar de quintal de casa.
Nós éramos um bocado, uma renca de meninos correndo, subindo em árvores, correndo, jogando bola, correndo, pulando elástico, correndo, pulando macaquinho, correndo, pulando corda, correndo, correndo, correndo... Eu, Marta, Gabriela, Angélica, Andréa, Bia, Renata, Roberta, Márcia Piu-liu, Cida, Regina, Lúcia, Van-van, e todos os outros de quem não consigo me lembrar o nome de jeito nenhum... Na hora do almoço, do banho, do jantar, alguém gritava da janela: “ta na hora!”, “volta!”, “sobe!” e aquela horda de selvagens se dissipava em alguns segundos, claro, depois da dezena de repetições dos clássicos “já vou!”, “tô indo!”, “peraí!”, “agora não!”... Era tudo muito simples, era tudo muito bom.
A simplicidade vivida ali tornava tudo mais verdadeiro, era ou não era, valia ou não valia, amava ou não amava. Não usávamos marcas, não sabíamos nem o que era, não estávamos nem de longe nesse faz de conta. Estávamos em outro, no faz de conta da imaginação correndo solta, sem televisão, sem videogame, na rua, descalços brincando, brigando, falando e fazendo bobagem…
As ambições de cada um foram deixando tudo aquilo pra trás, como algo a ser ultrapassado, como uma espécie de mundo interiorano a ser superado para ir mais longe. Mas longe onde ? Longe pra quê ? E finalmente, depois de tantas andanças, tantos encontros e desencontros, tantas despedidas e reencontros, estou sempre ali, com todos eles, brincando descalços uns com os outros naquelas ruas de paralelepípedo entre a rua do asfalto e a dos jardins.
Deixei os Barris com 15 anos, já com outros desejos, e fui morar na praia, mas essa é uma outra história…

Uma pequena leitura a mais:

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Encontros subterrâneos, pensamentos flutuantes


Já estava quase atrasada e, como sempre faço quando isso acontece, corro numa linha reta imaginária que me faz chegar onde quero sem ter que olhar para os lados, sem saber se quem atravessou a rua comigo foi um velho, um cachorro ou aquele príncipe encantado que mudaria minha vida para sempre... Lapso de tempo numa outra dimensão que piora sensivelmente com o hábito de colocar phones de ouvido com música alta. Aliás, música brasileira, por favor, é a única que consigo digerir num sábado de manhã correndo no metrô para não chegar muito atrasada e ainda por cima para ouvir falar de loucura. Hoje foi Lenine com seu desejo martelo e sua vontade bigorna, como os meus nesse momento, que me fazem sair da cama num sábado frio, interessada na loucura alheia.
Corri também pelas escadas, mas algo já me tragava fora do meu túnel narcísico feito de pressa, música poética pernambucana e maluquice, minha e deles. Fui dirigida, num segundo de calma, por um olhar enigmático e decidido, que me olhava como uma pergunta: quem é você? Eu não saberia responder a essa pergunta tão facilmente, mas ele, ele era um sikh.


Nunca tinha tido a oportunidade de me perguntar o que exatamente estaria por tras daquele turbante. Dentro sei o que tem, e é cabelo. Muito cabelo, cabelos longos de quem nunca os corta. É bem verdade que aqui na França, e também no Brasil, os sikhs estão bem longe de constituir um grupo étnico majoritário dentre os minoritários. Nem sei se posso afirmar ter encontrado algum sikh anteriormente numa situação assim tão banal quanto essa de correr para pegar o metrô. Talvez então tenha sido mesmo somente o fato de ter em minha frente um sikh que tenha me extraído daquele torpor mental típico dos apressados.
Saí da viagem pernambucana e, de repente estava lá, acompanhada de Juliette Binoche cuidando de um paciente inglês sem nome lembrando de seu grande amor perdido no deserto. Naquele filme, um dos meus preferidos e um dos mais poéticos que já vi, Binoche se apaixona por um sikh de turbante branco, soldado do exército inglês que desarmava minas alemães deixadas para trás num último fôlego de ódio. Vi o sikh de Binoche naquele sikh, com a diferença que o turbante que via era de um vermelho profundo, quase vinho.
Finalmente, fui buscar informações sobre o que é ser sikh. Eles usam turbantes para proteger os cabelos que nunca cortam, proteger da poluição, da chuva, do vento. Lembro que o sikh de Binoche usava azeite para cuidar das madeixas... A palavra "sikh" vem do sânscrito e quer dizer "estudante", enfatizando o aprendizado eterno do discípulo. O "sikhismo" foi criado no século XV pelo Guru Nanak que pregava a igualdade entre os homens, o que fazia dele um crítico da sociedade de castas e das eternas lutas entre hindus e muçulmanos. Sikhs são vegetarianos, monoteístas e atribuem à figura de Deus a expressão mais bonita que já conheci: "O Verdadeiro Nome"; também acreditam em reincarnação e na necessidade de reincarnar determinada pelo karma. O turbante não é uma obrigação religiosa, mas os integristas, como sempre eles, usam e se autoproclamam "puros". Os cabelos são um dom divino, e devem ser protegidos... A maior parte dos sikhs, sobretudo os que se enraizaram em países ocidentais, deixou de usar o turbante e cortou os cabelos pelos problemas usuais relativos ao preconceito e, hoje em dia, relativos também à confusão entre eles e o islamistas radicais, como os Talebans. Afinal, indianos hindus, sikhs, paquistaneses muçulmanos, afegãos radicais, o ocidente tem mesmo muita dificuldade com essas definições. Ainda lembro do primeiro dia em que peguei um metrô em São Paulo e, parando na estação da Liberdade, disse a minha mãe: quanto chinês!! O que, obviamente, foi acompnhado de um doloroso beliscão que levei anos para compreender...
O olhar daquele sikh me interrogava sobre meu lugar e eu não sabia o que dizer com o meu. Tentava me concentrar no Lenine que já cantava uma música sobre uma mulher magra, tema que dificultava ainda mais a minha concentração. Não consegui ver naquele olhar uma paquera, ou talvez isso seja efeito do abismo cultural que nos separava naquele momento: eu, mulher branca perfumada de Chloé, sombra dourada nos olhos e música nos ouvidos em típica ocidental; ele, sikh vindo de sei lá Deus onde e, por não saber, imediatamente colado ao estereótipo do bom selvagem incarnado naquele lindo sikh de Binoche. Mais do que lindo, salvador de vidas alheias, apesar dos perigos que corria com sua própria. Não pude deixar de achar que ele era digno, mais do que isso, heróico. Finalmente, meu olhar deve ter deixado escapar minha admiração.
Entrei no metrô e me perguntei: e ele? Com qual estereótipo fui identificada? Em qual prateleira fui guardada? Nunca saberei... Esperei do fundinho do coração que aquele sikh tenha pensado em Kristin Scott Thomas em européia elegante perdendo as estribeiras e a razão por amor naquele mesmo filme...

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Organised Housewife???? OMG!!!!!


Hoje dei um “like” numa página no Facebook que me fez pensar... Ela se chama Organised Housewife, com muitas dicas de como ser uma boa dono-de-casa, um saber todo estruturado e organizado como em artigos universitários. Um dos tópicos postados me fez rir: uma cleaning checklist para ajudar a fazer faxina... Sim, faxina, do tipo: comece por ali, faça isso e aquilo, depois passe para lá, etc., etc. E você vai marcando: banheiro? Checked! Privada? Checked! Pia? Checked! E depois você muda de universo: Panelas? Checked! Geladeira? Checked! Armários? Checked!


De fato, ela não deixa esquecer nada, mas é preciso, primeiro, querer se lembrar...
Não é nada mau, no fim das contas, para marinheiros de primeira viagem como eu, mas é um tanto irritante para o meu lado feminista de ver que são sempre as mulheres que estão investidas nesse papel. Enfim, a página não se chama Organised House... husband (??), que na verdade nem existe na língua inglesa, assim como não existe na nossa o dono-de-casa... Muito pano pra manga essa discussão...
Mas não era nela que queria entrar não. Era no fato de que essa checklist dos infernos me ajudou... Caramba! Eu, assim, toda feminista??? Sim, porque a xícara do café da manhã não dá a mínima pro fato de que me digo feminista e ela fica lá, impassível, esperando minha volta do trabalho, quando o sol já se pôs faz tempo... E já observei que todos os objetos caseiros agem do mesmo modo cínico. Ficam bem lá, no mesmo lugar, nem piscam os olhos. Só esperam... Quase posso ver o sorriso de satisfação deles quando abro a porta de casa me dizendo: eu vou te dobrar!
E dobram! Porque eu chego e começo a colocá-los todos nos seus devidos lugares, mas já é sempre tão tarde e já está quase na hora de começar a tirá-los todos dos seus lugares de novo... Essa batalha não termina...
E começo a me dar conta de que existe aqui, nesse universo paralelo da casa, toda uma organização e toda uma ciência de que não tinha o mínimo conhecimento. E o conhecimento aqui é necessário para que essa guerra de nervos não leve os seus embora com ela...
Vamos lá então para o grito profundo e mais intenso do dia:
EU PRECISO ME TORNAR UMA ORGANISED HOUSEWIFE!!!!!!!!!!!!!!!!!!