quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Encontros subterrâneos, pensamentos flutuantes


Já estava quase atrasada e, como sempre faço quando isso acontece, corro numa linha reta imaginária que me faz chegar onde quero sem ter que olhar para os lados, sem saber se quem atravessou a rua comigo foi um velho, um cachorro ou aquele príncipe encantado que mudaria minha vida para sempre... Lapso de tempo numa outra dimensão que piora sensivelmente com o hábito de colocar phones de ouvido com música alta. Aliás, música brasileira, por favor, é a única que consigo digerir num sábado de manhã correndo no metrô para não chegar muito atrasada e ainda por cima para ouvir falar de loucura. Hoje foi Lenine com seu desejo martelo e sua vontade bigorna, como os meus nesse momento, que me fazem sair da cama num sábado frio, interessada na loucura alheia.
Corri também pelas escadas, mas algo já me tragava fora do meu túnel narcísico feito de pressa, música poética pernambucana e maluquice, minha e deles. Fui dirigida, num segundo de calma, por um olhar enigmático e decidido, que me olhava como uma pergunta: quem é você? Eu não saberia responder a essa pergunta tão facilmente, mas ele, ele era um sikh.


Nunca tinha tido a oportunidade de me perguntar o que exatamente estaria por tras daquele turbante. Dentro sei o que tem, e é cabelo. Muito cabelo, cabelos longos de quem nunca os corta. É bem verdade que aqui na França, e também no Brasil, os sikhs estão bem longe de constituir um grupo étnico majoritário dentre os minoritários. Nem sei se posso afirmar ter encontrado algum sikh anteriormente numa situação assim tão banal quanto essa de correr para pegar o metrô. Talvez então tenha sido mesmo somente o fato de ter em minha frente um sikh que tenha me extraído daquele torpor mental típico dos apressados.
Saí da viagem pernambucana e, de repente estava lá, acompanhada de Juliette Binoche cuidando de um paciente inglês sem nome lembrando de seu grande amor perdido no deserto. Naquele filme, um dos meus preferidos e um dos mais poéticos que já vi, Binoche se apaixona por um sikh de turbante branco, soldado do exército inglês que desarmava minas alemães deixadas para trás num último fôlego de ódio. Vi o sikh de Binoche naquele sikh, com a diferença que o turbante que via era de um vermelho profundo, quase vinho.
Finalmente, fui buscar informações sobre o que é ser sikh. Eles usam turbantes para proteger os cabelos que nunca cortam, proteger da poluição, da chuva, do vento. Lembro que o sikh de Binoche usava azeite para cuidar das madeixas... A palavra "sikh" vem do sânscrito e quer dizer "estudante", enfatizando o aprendizado eterno do discípulo. O "sikhismo" foi criado no século XV pelo Guru Nanak que pregava a igualdade entre os homens, o que fazia dele um crítico da sociedade de castas e das eternas lutas entre hindus e muçulmanos. Sikhs são vegetarianos, monoteístas e atribuem à figura de Deus a expressão mais bonita que já conheci: "O Verdadeiro Nome"; também acreditam em reincarnação e na necessidade de reincarnar determinada pelo karma. O turbante não é uma obrigação religiosa, mas os integristas, como sempre eles, usam e se autoproclamam "puros". Os cabelos são um dom divino, e devem ser protegidos... A maior parte dos sikhs, sobretudo os que se enraizaram em países ocidentais, deixou de usar o turbante e cortou os cabelos pelos problemas usuais relativos ao preconceito e, hoje em dia, relativos também à confusão entre eles e o islamistas radicais, como os Talebans. Afinal, indianos hindus, sikhs, paquistaneses muçulmanos, afegãos radicais, o ocidente tem mesmo muita dificuldade com essas definições. Ainda lembro do primeiro dia em que peguei um metrô em São Paulo e, parando na estação da Liberdade, disse a minha mãe: quanto chinês!! O que, obviamente, foi acompnhado de um doloroso beliscão que levei anos para compreender...
O olhar daquele sikh me interrogava sobre meu lugar e eu não sabia o que dizer com o meu. Tentava me concentrar no Lenine que já cantava uma música sobre uma mulher magra, tema que dificultava ainda mais a minha concentração. Não consegui ver naquele olhar uma paquera, ou talvez isso seja efeito do abismo cultural que nos separava naquele momento: eu, mulher branca perfumada de Chloé, sombra dourada nos olhos e música nos ouvidos em típica ocidental; ele, sikh vindo de sei lá Deus onde e, por não saber, imediatamente colado ao estereótipo do bom selvagem incarnado naquele lindo sikh de Binoche. Mais do que lindo, salvador de vidas alheias, apesar dos perigos que corria com sua própria. Não pude deixar de achar que ele era digno, mais do que isso, heróico. Finalmente, meu olhar deve ter deixado escapar minha admiração.
Entrei no metrô e me perguntei: e ele? Com qual estereótipo fui identificada? Em qual prateleira fui guardada? Nunca saberei... Esperei do fundinho do coração que aquele sikh tenha pensado em Kristin Scott Thomas em européia elegante perdendo as estribeiras e a razão por amor naquele mesmo filme...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada por ter lido!