quinta-feira, 8 de maio de 2014

O bolo de aniversário, os presentes e a identidade da aniversariante

Quando minha filha pediu, para o seu aniversário de 7 anos, um bolo com a “Galinha pintadinha”, agarrei a ocasião como se fosse a última tábua de salvação nesse oceano conturbado das identidades femininas em construção. Eu sabia o que estava por vir: as montruosas, horríveis e anoréxicas “Monster High”. Elas não tardaram a aparecer no horizonte, vieram na bolsa do Papai Noel que, para contrabalançar o fenômeno gótico-pop-brega, trouxe também pijamas e pantuflas (sim, pantuflas!) para Camille, aquela boneca mimosa e comportada com carinha de boa aluna de escola particular. Isso ela não tinha pedido, claro, mas Papai Noel recebeu uma outra cartinha paralela pedindo pelamordedeus que ele fizesse algo contra aquela onda maléfica que estava inundando o ambiente, tal um tsunami cor roxo-caixão. O pijama e as pantuflas eram rosa-bebê.


O bolo da Galinha pintadinha


Muitas fases, imagens, identificações se passam nessa construção complexa da identidade feminina. Ela já foi Hello Kitty, fofinha, rosinha, com lacinho na cabeça, antes de se tornar uma princesa, esperando o príncipe encantado numa carruagem colorida. Enfeitada de princesa, toda rosa, mas não rosinha, ela estava lá sustentando a imagem de uma dama que já não mais usava lacinhos para si mesma mas para um outro. O bolo foi uma carruagem, porque a dança das marcas me incomoda e Hello Kitty já havia conseguido terminar com minha paciência para todo e qualquer merchandising. Não havia nenhuma das princesas clones no bolo, nem a amarela, nem a azul, nem a rosa, nem a verde. Enfim, elas apareceram furtivamente nas velas... Mas foram logo queimadas em praça pública e empaladas num palito...



 O bolo da Hello Kitty


A carruagem da princesa

Depois da princesa, veio o mundo encantado da bailarina, também rosa, mas algo assim mais determinado e equilibrado na ponta dos pés da feminidade, com saias de filó, collants, e o corpo desenhado debaixo do rosa-bebê. O bolo da bailarina tinha saias. Saias rodadas, daquelas que voam e que mostram algo mais do que fofura. Vestida de bailarina, cabelos presos, paetês, saia de filó transparente e collant rosa, ela estava pronta para o espetáculo do mostra-esconde típico que vai se inscrever como leitmotiv feminino.


O bolo da bailarina

Até aí, as bonecas seguiam o ritmo da música infanto-feminina que tratava do corpo de uma menina, não de uma mulher. Camille, a tal boneca com carinha de menina comportada, que não diz bobagens e não pula em poça d’água, apaziguava incêndios que as Barbies atiçavam. Sim, elas vieram, essas bonecas com cara de americanas indo para o Spring Break em Fort Lauderdale, essa espécie de prequel de Pamela Anderson (que deve certamente ter tirado sua inspiração daqueles seios de plástico enfeitados com um sorriso Colgate).
Na minha época, e no meu universo, não existiam Barbies. Existiam Susis. Susi era morena, a minha ao menos era. Era bem mais encorpada e tinha menos seios. A Susi foi, aparentemente, inspirada por uma tal de Sindy, uma inglesa que competia com a Barbie e que foi, ela mesma, inspirada por uma tal de Tammy, americana. A Susi tem uma história interessante, porque, com a mudança e a modernidade dos materiais – os plásticos, vinis e outros tantos, que invadiram nossas vidas nos prometendo felicidade eterna – as modificações das formas da boneca foram no sentido de deixá-la mais gordinha. Parece incrível que no ano de 1975, quando a moda usava cabelos longos, hippies, corpos magros por utopias e drogas, a Estrela tenha decidido desenhar um rosto mais rechonchudo para a nossa Barbie nacional. Mas, justamente, ela não era Barbie, era Susi. O fato é que Susi tinha, para mim, a cara da minha mãe. Ela tinha a aprência de mulheres normais, acessíveis, e nem por isso ela deixava de ser bonita. Não sei o que aconteceu com a Susi depois dos anos 70 porque deixei de brincar de boneca e quis, ao invés disso, o cabelo da Paula Toller quando o Kid Abelha começou: curtinho e descolorido. Bom, o curtinho só fui ter coragem com mais de 20 anos e o descolorido, nunca... Minha imagem de cantora do Eurythmics ficou só na fantasia.


Susi

Depois da Camille, que teve seu tempo de glória, veio a Idalina, que ainda está durando, apesar de ter sido um tanto vampirizada por mostrengas góticas. Idalina é uma boneca “do mundo”, como se diz aqui na França. Isso quer dizer, com uma identidade cosmopolita, um tanto quanto ela deve se achar também com essa mãe aqui e com sua dupla nacionalidade. Cidadã do mundo, ela se apaixonou por uma coleção onde as bonecas vêm de outro lugar: Espanha, Japão, Austrália, África (eu sei, todos são países, menos a África que, numa só palavra, vira uma amálgama negra vestida de roupas coloridas...). Mas, enfim, elas são interessantes porque são imagens do outro, do outro nela. Então, como mãe (e toda mãe está espreitando para dar o bote), fiz pesar a balança para o lado da espanhola, Idalina. Não era loira, ponto pra ela; não era magra, ponto pra ela; tinha olhos castanhos, ponto pra ela; ela vinha com um livro dentro da caixa, ponto pra ela; ela era latina, pontíssimo pra ela. Pronto, escolhemos Idalina e lemos sua história de menina pré-adolescente filha de mãe solteira na Espanha, mãe essa que devia trabalhar como cantora de flamenco para ganhar a vida. Vida difícil, a de espanhola. Idalina trouxe com ela roupas de flamenco, leque, xale e uma linda rosa vermelha para colocar nas madeixas.

Camille 


Idalina

Até que chegou a época de pensar no bolo de aniversário de 7 anos. Justamente naquele ano ela havia descoberto o universo todo em roxo das Monster High com uma amiguinha que já se interessava por aqueles esqueletos fantasiados. Fiz o bolo, inclusive, dessa amiguinha, e o tema escolhido foi, logicamente, esse. Tentei fazer o máximo para tirar do bolo de aniversário a cara de bolo de Halloween para o qual o tema tende. Fiz o que pude e não saberia fazer duas vezes. E eis que, de repente, num surto nostálgico de sua condição infantil que se vai com o tempo, apareceu no horizonte a Galinha Pintadinha vestida de capa e espada para lutar contra jovens anoréxicas. Gordinha como é, a tal galinha azul não teve muita dificuldade para quebrar os ossos das góticas de salto e o bolo saiu colorido, florido e com a galinha que estava ali para significar em cacarejos que a infância ainda duraria um tempinho. Ufa! Mas a tal galinha tinha uma outra carta na manga. Ela era brasileira e nenhuma das amiguinhas de minha filha conhecia a criatura, coisa que pedia explicações e a anfitriã mirim se esmerava a discorrer sobre sua identidade brasileira, aquela que ninguém tinha.


Monster High


Bolo Monster High da amiguinha


Os esqueletos foram enterrados. Como puro efeito de moda que são, foram parar numa caixa, caixa que foi parar no fundo do armário, armário que é regularmente inundado com mais brinquedos, como pás de cal. E eu vou deixando o tempo decompor esse fantasma, não tenho hábito de evocar almas penadas.
E então já vem vindo a época em que as questões relativas ao tema do aniversário e, lógico, do tão falado bolo, recomeçam. A marca atual que faz sucesso entre as meninas da escola vem da Argentina, pela Disney, e se chama Violetta. Bom, nada contra uma argentina que, comparada à minha querida Idalina, tem lá também seu sangue latino. Mas, mas, mas, puro produto Disney, princesa latina, ela ocupa o lugar de pobre coitada filha de mãe morta e de pai interessado por uma malvada maquiada. Sim, sim, eu sei porque já assisti com ela esse negócio. Princesa de carne e osso, dessa vez, nem rosa, nem azul, nem verde, nem amarela : violeta. Essa, cantorazinha de uma espécie de escola de estrelinhas, ainda traz um outro ideal perigoso que, junto com a magreza da Barbie, sem falar na anorexia das Monster High, invade a caraminhola das meninas de hoje : o ideal da fama. Fama de qualquer jeito, a qualquer preço, querem todas ser “star” do star system que as transforma todas em buracos negros. Ou pior, em melancias, melões, jacas, e quem sabe mais o quê...
Então, mamãe coragem pensa e queima os neurônios para propor outra coisa. Pensei: por que não Paris? Tanta gente sonha com Paris e, nós, nós estamos aqui, então... Ah, mas a realidade não constrói sonhos... Mas quem sabe o ponto não seja justamente esse? Tentar sonhar com nossos elementos reais e que possamos assim, com nossos sonhos, transformar a realidade de fato que nos rodeia? Não sei, mas quem sabe minha filha venha querer a ser, no espaço de uma festa, a parisiense estereotipada passeando com seu poodle em baixo da Tour Eiffel, ou como a parisiense de esquerda tomando seu café em Saint Germain des Près, tão estereotipada quanto. Não posso deixar de pensar no meu papel e nas minhas imagens femininas nesse processo, já que, finalmente, gostaria muito mais de ver minha filha lembrando, de algum modo, Simone de Beauvoir que Pamela-Barbie Anderson ou Lady-Monster Gaga-High...




2 comentários:

Obrigada por ter lido!